Doris Fernandes dá sua resenha do Cabaré Total 4
O Cabaré Total da Sitorne, deste mês de agosto, foi uma comemoração aos 10 anos dedicados a palhaçaria, dos expoentes desta nobre arte em Salvador. A maioria dos excelentes palhaços que apresentaram performances foi de veteranos, e a escolha de minha observação recaiu sobre o palhaço Biancorino, em função do referencial que este representa para mim: meu iniciador e “monsieur”.
Biancorino sempre utiliza cenas da palhaçaria clássica em suas performances e isto pra mim é uma aula de como fazer a coisa certa. Por fazer a coisa certa me refiro ao tempo cômico bem utilizado, sem exageros desnecessários, mantendo a naturalidade, contato ininterrupto com a platéia, cumplicidade e esbanjando comicidade.
Normalmente não há a utilização da palavra, lança mão do teatro físico no desenrolar das ações, o que é bem típico da palhaçaria, que trabalha mais com estruturas visuais, com a imagem.. Isto ficou mais evidente na performance do garçon, onde fez dupla com o elegante Tezo (que nome mais apropriado para um Branco).
Já havia visto esta performance de outras vezes, e sempre é uma aula que não se esgota. A relação Branco / Augusto ali é sempre muito bem explicitada, e o vai e vem de Biancorino ao servir a bebida é perfeita. No início querendo impressionar com o bem servir, Biancorino comete gafes imperdoáveis ao segurar a garrafa, ao servir a bebida, ao experimentar da mesma, sua inocência beira a estupidez. Tudo acompanhado do olhar de reprovação do britânico Tezo, que reprova mas tolera, como convém a um autêntico Branco, cujo objetivo na trama é dar lastro, fazer o contraponto para a atuação do Augusto.
A sensação de um crescendo na beberagem do garçon e as confusões que surgem daí, culminam na alienação do cliente (digo do palhaço Branco), o que cria uma cumplicidade muito grande com o público. A partir daí Biancorino, no grau máximo da bebedeira, se esquece por alguns segundos da presença do seu “superego”, o palhaço Tezo. E não é por ai o caminho do palhaço? Alguém que busca o seu próprio ridículo com a máxima liberdade, sem qualquer expressão de crítica ou julgamento? Anseio de muitos, realização de poucos, por isto a identificação do público. Porém para tornar isto mais hiperbólico, digo, mais visível é indispensável a figura do Tezo, que está ali para representar a ordem, o mundo racional, adulto e repressivo, nosso “superego” internalizado.
A cena em que Biancorino atua com seu rival disputando o coração da palhaça Ricota, foi muito envolvente. Retrata “o humano, demasiado humano” das relações, as incertezas, o ciúme, o choro quando da negativa do outro, enfim todo este universo “ridiculo” dos apaixonados. E Biancorino mais uma vez dá uma aula em cena, interpretando o palhaço enamorado que é ele próprio, desnudamento metafórico diante do público. O desnudamento literal viria no final de tudo, ao atender as fantasias sexuais de Ricota. O que foi aquilo? Um ET? Um submarino nuclear russo da época da guerra fria? Não, Biancorino nu em pêlo no palco. Que coisa...
Outra cena de Biancorino, esta também inédita para mim, foi o Desafio 2, onde simula um duelo com o outro pretendente ao coração de sua amada. Hilário o duelo de esguicho de água na boca. Até hoje não entendo como coube tanta água na boca destes palhaços, pois a cena foi longa. Só acho que o início da cena poderia ter sido mais dilatada e explicativa, quero dizer, poderia ter um chamamento para o duelo, uma provocação.
Esta cena remete a atuação clássica de Carlo e Alberto Colombaione: Final de Hamlet disponível no youtube. Como já disse é típico na atuação de Biancorino resgatar cenas clássicas da palhaçaria, o que para mim é uma lição. Também entendo que nesta cena havia uma mescla de palhaço e bufão, algo de politicamente incorreto.
O tempo cômico foi perfeito, e mantiveram a comunicação com o público todo momento. Conseguiam estar atentos um ao outro para não perder o “timing” certo de esguichar água, ser provocativos, e ao mesmo tempo manter o olhar com o público. Esguichar a água imitando um chafariz foi o máximo, muito bom aquilo.
Quando a cena já tinha sido aproveitada ao máximo, e correndo o risco de perder a graça, a palhaça Ricota intervêm e conclama um duelo “de homens”, entregando a cada um uma arma. Aí, os efeitos especiais entram em ação, com uma iluminação diferente, a ação se passa em “slow motion” . Gostei deste final Spielberguiano.
(Doris Fernandes é aluna da disciplina Palhaçaria, ministrado este semestre por Demian Reis, do curso técnico profisionalizante da arte de palhaço da Sitorne Teatro.)
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beijos...jbbsb