"A verdade em jogo ou os papéis da palavra verdade no jogo do faz de conta", Meran Vargens, resenha por Virgínia de Andrade Santiago




Com o objetivo de trabalhar o valor da palavra verdade no trabalho técnico-expressivo vocal do ator, a atriz, diretora e professora de Teatro Meran Vargens, inicia seu texto trazendo para o trabalho do ator a perspectiva do jogo de faz de conta. Ela busca, assim, facilitar a incorporação e desincorporação de personagens pelo intérprete, fazendo com que ele entre e saia do papel que lhe foi incumbido com mais facilidade. Assim como o trabalho da voz, para Vargens, na dinâmica do jogo favorece ao ator ter uma maior expressividade nas suas esferas física, mental, energética e estética-poética.
Contudo, esse jogo possui regras. Ao contrário do jogo de faz de conta das crianças em que elas jogam consigo mesmas, o jogo dos adultos, do teatro exige a presença do espectador, com quem o ator forma um elo em que ambos definem em si condições específicas de consciência. E, se quebrada essa ligação, o jogo é abalado e dá espaço à mentira. Por isso o papel tão importante da verdade na produção teatral.
E, assim, Vargens estabelece os três papéis da verdade: 1) aquela existente apenas no contexto da obra, que segue seus próprios códigos que determinam uma possibilidade de verdade no que se refere à semelhança entre as experiências vividas e a sua representação e que necessita da presença do espectador, que compartilha com o ator os siginificados da linguagem utilizada (verdade cênica); 2) aquela criada pelo ator quando este apropria-se dos códigos de linguagem com precisão, o que exige que as crenças deste intérprete estejam vinculadas à significação destes códigos; 3) aquela que expressa a coexistência de duas verdades, a da vida real e a da ficção (verdade cênica), que atuam simultaneamente e são inseparáveis no momento do jogo.
E, como exemplo de trabalho com a verdade, trago a peça “Meu nome é mentira”, que é o espetáculo de formatura desse ano de 18 alunos do curso de Interpretação da Escola de Teatro da Universidade Federal da Bahia (ETUfba), escrita e dirigida pelo doutor em Artes Cênicas e professor da Escola de Teatro Luiz Marfuz. O espetáculo traz como conceito a frase do famoso autor alemão Bertolt Brecht: “na sociedade em que vivemos a bondade é uma exceção”, e apresenta como enredo o julgamento de um explorador de minérios acusado de assassinar seu empregado por motivo ideológico, movido pelas diferenças de classe social. Levado a julgamento, o tribunal se converte numa arena de absurdos onde juízes, advogados, testemunhas e atores mostram diferentes versões do mesmo fato, levantando questionamentos acerca da natureza do que se diz verdadeiro ou falso. Enfim, a peça é uma paródia à espetacularização dos chamados “julgamentos do século”, que fazem do fato uma ficção e da ficção a realidade dos fatos. E está enquadrado na proposta de Brecht, que propõe um teatro com capacidade de historicizar um acontecimento de forma crítica, tirando o espectador da passividade de mero observador/receptor e levando este a refletir sobre o acontecido.
Dessa maneira, é possível perceber a importância da verdade na apresentação teatral, pois, sem a “presença” desta, não se faz possível a interação dos atores com os espectadores e a mensagem que se procura passar não é transmitida. Por isso, a montagem de um espetáculo é tão difícil. Os atores precisam passar para o público, de forma clara, a significação dos códigos utilizados, o que não é tarefa fácil. E, assim, com menos de um semestre de dedicação às técnicas teatrais, me vejo com uma grande responsabilidade em atuar como o personagem “Tonhão” (presidiário que manda em todos os outros em sua cela, inclusive nos agentes penitenciários) na apresentação final da disciplina Técnicas Básicas em Teatro, pois necessito passar para o espectador uma verdade, para que este entre no jogo de faz de conta que estou propondo. O que, de forma alguma, é fácil.
Nunca estive contato direto com o mundo ao qual “Tonhão” pertence e, por isso, tive que fazer uma pesquisa para basear as minhas ações em cena, tentando passar uma “verdade”, a verdade da prisão. Por ser um personagem totalmente contrário a mim, tive que me libertar de algumas amarras e me “jogar” nesse jogo, fazendo com que o faz de conta se misturasse com a minha vida. “Tonhão” ainda está em construção, crescendo em mim, porém o meu eu ainda reluta em deixá-lo sair, até o espetáculo ainda é necessário muito trabalho. É por isso que o trabalho do ator não deve e não pode ser negligenciado. Estar, em um mesmo corpo, convivendo com duas “almas” que parecem verdadeiras em seus ambientes (Virginia na vida “real” e “Tonhão” em cena), despende energia e exige muito trabalho.

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