“O riso dos Hotxuás” e intercâmbio de palhaçaria por Nelson Junot Borges



           O contato com um mundo diferente do que estamos inseridos e acostumados pode nos fazer refletir e reparar como as vezes não damos o verdadeiro valor a coisas que parecem pequenas ou passam desapercebidas em nossas vidas. Durante um curto período pude ter uma breve convivência com Ahprac Krahô, um índio da tribo Krahô que passou uma curta temporada em Salvador a convite do professor e palhaço Demian Reis para um “intercâmbio de palhaçaria”. Ahprac é um Hotxuá, espécie de palhaço da sua tribo e foi uma das atrações do HeinComTraço, que ocorreu na capital baiana durante o mês de outubro de 2011. Ele fez algumas participações e exibições durante a aula e no IHAC, o que nos permitiu conhecer um pouco mais da sua realidade.
            O primeiro ponto que me chamou atenção no índio foi o orgulho e a preocupação que ele apresentava com a sua língua. Ele sempre fazia questão de falar tudo duas vezes, a primeira em Krahô e a segunda em português. O que aos ouvidos de muito pode parecer besteira, para ele trata-se de uma tentativa de manter viva uma cultura. Ele falava português, mesmo que com algumas dificuldades, para ser entendido, mas fazia questão de falar Krahô, para tentar dar uma sobrevida a sua língua nativa, que tem perdido espaço devido a ignorância de um país, que teoricamente é multilíngüe, mas que na prática negligencia a língua das minorias.



            Outro fator de destaque foi a sensação de que tudo fazia parte de um mundo paralelo. A diferença de língua, cultura, postura, valores e atitudes faziam parecer que o índio fazia parte de outro país bem distante do Brasil, além de em muitos momentos ele ter se mostrado com uma aparência de inocência, que pouco pode ser encontrado em sociedades urbanas ocidentais.
            No entanto, entre todas as diferenças, um ponto de interseção pode claramente ser notado, o riso. Muitas semelhanças puderam ser encontradas entre os Hotxuás e os palhaços, principalmente por extraírem a comicidade de coisas simples e da auto exposição que estas duas figuras se submetem. Assim como os palhaços, os Hotxuás se colocam como objeto do riso, e buscam em questões cotidianas e simples, modos de fazerem as pessoas rirem.
A cultura de Hotxuá é passada de parente para parente, como é comum na palhaçaria de família. Ao nascer, se o índio herdar o nome de um Hotxuá, ganhará o status de Hotxuá e é batizado como um, mesmo que depois ele não venha a dar continuidade. Além disso, um índio pode se tornar um Hotxuá e ganhará um novo nome, evidenciando mais um ponto em comum com o palhaço, que geralmente também é batizado com um novo nome ao entrar no mundo da palhaçaria. 
A comicidade de um Hotxuá é a base de imitações das plantas e de animais, além da interação com os demais integrantes da tribo, muitas vezes ultrapassando limites, pouco aceitos normalmente, mas que o “status” do Hotxuá o dá permissão para o fazer, como descreve Ricardo Puccetti, em seu texto O Riso dos Hotxuás.
Puccetti, que é palhaço, participou do documentário dirigido por Letícia Sabatella, sobre a tribo Krahô e os Hotxuás, passando uma temporada convivendo dentro da aldeia indígena e participando dos seus costumes e rituais. Segundo ele, o Hotxuá apresenta grande prestígio e cumpre uma importante função social dentro da tribo. Eles são parte importante na estrutura social da aldeia, ajudando a sustentar a cultura Krahô e fortalecendo a forte relação que eles tem com a natureza. Segundo a lenda, os Hotxuás teriam surgidos das plantas e por isso a imitação das mesmas em seus “números”.
Apesar das semelhanças, eles apresentam uma pequena diferença dos palhaços brasileiros pela pouca utilização de fala, que é uma característica mais freqüente na palhaçaria européia. No entanto, a característica corajosa e transgressora da figura do palhaço é facilmente identificada como uma interseção com os Hotxuás, com a capacidade de se reinventar e de se expor ao “ridículo” e extrair o riso e a felicidade das pessoas, melhorando a sua vida.
As dificuldades vividas pelos Krahôs, assim como todas as tribos indígenas que ainda existem, ficaram claras nos depoimentos do professor Demian, que também passou uma temporada na tribo e estabeleceu uma amizade com Ismael Ahprac. Influência da cultura branca e problemas de saúde, como alcoolismo e até casos de suicídio foram exemplos que deixaram a turma assustada.
Porém com todas as dificuldades, foi impossível não sentir uma ponta de inveja daquela sociedade, que aprendeu a respeitar uma figura simbólica, que é responsável por um fator fundamental para a vida de uma pessoa, o riso a partir do simples e sem prejudicar ou atacar ninguém. Nós vivemos em uma sociedade em que pessoas se utilizam e se aproveitam de escudos como as televisões para extrair o riso à custa dos defeitos e das dificuldades alheias, programas que buscam ridicularizar e expor a vida das pessoas. Os apresentadores destes programas são idolatrados e venerados por esta sociedade, que ainda se diz civilizada. Isto sim é uma piada!



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