Tataravó - travessia, perigo e imaginação



Tataravó - Festival Internacional de Artes Cênicas da Bahia FIAC - 2009, foto Fátima



Abstract: This text is a brief reflective register about the creation of the street show Tataravó and a round the experience of performing it on streets, squares and theatre festivals in Europe. I make a commentary about technical adjustments, dramaturgical aspects, and procedures drawn to develop the clownery of the show with taken because of obstacles imposed by different conditions of presentation. To accomplish this reflection I used the notion of experience of Jorge Larrosa Bondía and the relation between imagination and mobility of Gastón Bachelard.

Key-words: clown, performance and relate.

Na paixão se dá uma tensão entre liberdade e escravidão, no sentido de que o que quer o sujeito é, precisamente, permanecer cativo, viver seu cativeiro, sua dependência daquele por quem está apaixonado. (BONDÍA, 2002, p. 25)







Taravó no MAM, Solar do Unhão, 2009 Foto Eduardo Ravi




Tataravó é uma experiência da imaginação em movimento. Tataravó é um espetáculo de rua feito com o tijolo e o cimento da improvisação clownesca. É uma experiência porque, para chegar a onde chegamos realizamos um percurso, uma trajetória, uma travessia. É uma experiência porque, para dar vida a este espetáculo atravessamos perigos. É uma experiência porque, eu e Alexandre Luis Casali temos uma paixão pela arte de palhaço; sofremos a necessidade de estar constantemente abrindo as portas do imaginário que esta entidade presentifica. Somos piratas no oceano da arte de palhaço. Estou me servindo da acepção de experiência proposta por Jorge Larrosa Bondía. Bondía, que compara o sujeito da experiência com os piratas:

O sujeito da experiência tem algo desse ser fascinante que se expõe atravessando um espaço indeterminado e perigoso, pondo-se nele à prova e buscando nele sua oportunidade, sua ocasião. A palavra experiência tem o ex de exterior, de estrangeiro, de exílio, de estranho e também o ex de existência. A experiência é a passagem da existência, a passagem de um ser que não tem essência ou razão ou fundamento, mas que simplesmente “ex-iste” de uma forma sempre singular, finita, imanente, contingente. (BONDÍA, 2002, p. 25)


A terceira qualidade da experiência é a paixão - os sentidos da paixão por ele referidos são muitos. Talvez a que mais toca a experiência Tataravó seja o de alucinação. Nesta freqüência o sujeito apaixonado ama precisamente a sua própria paixão. Somos prisioneiros - eu e Casali - ou viciados, em mergulhar na zona criativa que é a exposição do ridículo humano. Seja apresentando, ensaiando, montando espetáculos e gags, matando cachês em eventos de natureza diversa, seja discutindo, seja vendo vídeos e filmes, freqüentando festivais, estudando, clowniando nosso cotidiano, mas principalmente experimentando. Nesta acepção alucinógena “(...) o sujeito apaixonado não está em si próprio, na posse de si mesmo, no auto domínio, mas está fora de si, dominado pelo outro, cativado pelo alheio, alienado, alucinado.” (BONDÍA, 2002, p. 26)

Então Tataravó é uma experiência porque, sua passagem e seu modo de afetar nossa existência evocam travessia, perigo e paixão. Esta reflexão tenta esboçar os contornos dos percursos, dos perigos e dos embalos da imaginação poética deste espetáculo. Ao final teremos arriscado empreender um saber de experiência. Ainda seguindo a bússola de Bondía com esta expressão, mas também começando a conjugá-lo com o “haxixe virtual“ de Bachelard, tecido para acolher a imagem do poeta como uma pequena loucura experimental no reino da imaginação. Ou seja, quero usar os pincéis da noção de imaginação e mobilidade de Bachelard e do saber de experiência de Bondía, para pintar, decifrar, elucidar, e principalmente velejar em aspectos conectados à experiência Tataravó.

De certa forma este relato, que é saber de experiência, é a provocação de um exagero. É um exagero da experiência poética Tataravó, que é visto como vantagem em termos bem expressos por Bachelard: “E como acolher uma imagem exagerada, senão exagerando-a um pouco mais, personalizando o exagero? A vantagem fenomenológica não tarda a aparecer: prolongando o exagerado, temos com efeito, alguma possibilidade de escapar aos hábitos da redução.” (BACHELARD, 2003, p. 222) Esta escrita é imaginação. Temos o hábito de pensar na imaginação como uma faculdade de formar imagens quando antes é o contrário, o processo que se dá; a imaginação é um modo de deformar as imagens de um modo particular, o exagero pode ser um destes modos.

Tataravó foi concebido no dia 9 de março de 2003, nas praças do Aeroclube, Shopping aberto situado na orla de Salvador. Apesar das nossas experiências comuns com a técnica de palhaço, nossos percursos foram bem diferentes. Tanto eu como Casali, participamos do 8º Retiro de Clown coordenado por Ricardo Puccetti e Carlos Simione do grupo LUME Teatro em 1999. Porém, enquanto a minha aprendizagem se deu no âmbito de um trabalho de grupo, a experiência de Casali se deu numa dinâmica mais solitária, com uma intensa freqüência em apresentações de rua. A diferença das nossas experiências com o palhaço favoreceram uma das riquezas deste espetáculo que é o encontro, a mistura, o diálogo e a integração de formações e sensibilidades técnicas distintas.

O palhaço Biancorino (Casali) sempre integrou a fala em suas formas de construir suas gags e nas suas improvisações com a platéia, já no Palhaços para Sempre, um dos princípios adotados era não deixar as ações e reações extravasarem pela fala, no interesse de acessar correntes e lógicas que passassem longe da racionalidade do discurso oral. Ora, o comportamento de um, mais mudo que o outro, criou uma vitalidade que advém justamente deste contraste. Apesar de fazer parte do nosso estudo em grupo, “saídas de clown”, onde interagíamos e improvisávamos em ambientes diversos, sobretudo em ruas, praças e espaços públicos, até 2003, não tínhamos uma prática de apresentação de rua como Casali. Talvez este seja um dos motivos que na performance de Casali durante a apresentação de Tataravó, o mesmo se mantém em constante contato com a platéia, enquanto Tezo (Demian Reis) tem o pé mais plantado na sua própria ação na cena. Novamente a diferença no comportamento cênico dos dois enriqueceu, tornou mais eficaz o funcionamento da performance como um todo.




Tataravó no Festival Nacional de Teatro da Bahia 2006

Outras diferenças podem ser identificadas, mas para nosso argumento da produtividade das diferenças estas são suficientes. Não preciso dizer que a seleção, o modo como misturamos e integramos nossas contribuições artísticas resulta de um intenso processo de percepção do que está funcionando durante a apresentação, quando perdemos a conexão da platéia; mas também idéias e desejos são alvo de negociações entre os atuantes onde nossos pontos de vista são confrontados, preferências defendidas e finalmente acordos e pactos estéticos selados. E como qualquer relação, chega o momento em que cada um tem que ceder e abrir mão da sua obsessão, aprender a se desapegar de uma idéia fixa ou imagem sólida demais, e estar aberto para mudanças, pois a rua é um território com atmosferas em permanente fluxo de transformação. Não é como a casa de teatro protegida pelas intempéries do clima a céu aberto.

No mesmo ano de 2003, eu e Casali, instigados pelo contato com diversos artistas de rua do mundo que vieram para o 2º Festival Internacional de Música e Espetáculo de Rua da Bahia, vislumbramos a possibilidade de atravessar o oceano rumo aos festivais e às ruas da Europa. Envolvemos mais um parceiro neste empreendimento, o músico Celo Costa, que havíamos conhecido em sua participação no espetáculo A Era Clown – É Tempo de Palhaço dirigido por Casali. O duplo desafio, obstáculo, perigo, estava colocado: primeiro reconfigurar Tataravó para atingir as platéias européias, segundo, redimensionar um espetáculo de dupla num formato de trio, integrando a participação de um músico, cuja interação se daria principalmente tocando a sanfona. O formato de trio trouxe um signo de brasilidade fortíssimo que é o trio de forró nordestino composto por triângulo, zabumba e sanfona. A magreza de Tezo se adaptou à forma e espessura do triângulo, enquanto a zabumba (instrumento de maior envergadura, volume e peso) caiu como uma luva para compor os apetrechos, a forma corporal e atitude de Biancorino.

No primeiro mês em Barcelona (Espanha), ainda sem a companhia de Celo Costa, Reis e Casali enfrentaram talvez o momento mais doloroso da travessia composicional. A rotina não obtinha a adesão ou conectividade nem a reatividade do público, que permitia instaurar a atmosfera de jogo que obtinha com o público de Salvador. Coragem, paciência, disciplina, persistência, humildade e imaginação foram acionadas para atravessarmos as perigosas águas que adentramos. Estávamos com pouco dinheiro para sobreviver, numa cidade cara, morando na casa de amigos, dividindo o mesmo quarto, com apenas uma perspectiva para conquistar a dignidade de comprar o nosso pão de cada dia: o show de rua Tataravó. Logo atinamos para o centro nevrálgico dos artistas de rua daquela cidade: Les Rambles. Uma praça em formato de corredor que atravessava o centro até se conectar com a orla. Cada poste era explorado por um músico, malabarista, palhaço. Artistas que misturavam todas estas técnicas eram o mais comum, mas principalmente estátua-vivas – que infestavam todos os quarteirões.

Para encurtar a história começamos ganhando seis euros por dia. Nas últimas semanas, quando queríamos, ganhávamos cem euros por dia, claro que isto significava matar o dia inteiro na Les Rambles, principalmente nos momentos de pico. As rochas desta caminhada foram inúmeras, desde rivalidade de outras artistas que territorialisavam os espaços como seus, por mérito de tempo, ou melhor, por força da invenção de uma tradição ou simplesmente por ganharem no grito. Vale lembrar que naquele momento político na Europa, era proibido aos estrangeiros trabalhar ou ganhar dinheiro sem as devidas licenças de trabalho e cidadania, o que significou uma desvantagem para nós - a ameaça de problemas com a polícia pública era um fator de tensão constante no ar, sobretudo se tratando das apresentações de rua; nos festivais esta tensão era eclipsada. Havia bares na Les Rambles que, dependendo da nossa proximidade, ameaçavam-nos de chamar a polícia. Não foram poucas as interrupções que fomos obrigados a fazer, às vezes perto do final do show, o que prejudicava o trabalho estratégico da arrecadação do chapéu. Havia o fator da técnica de rua para conectar as platéias que circulavam naquela localidade, o que exigia um ritmo próprio em cada espaço. Imagine que estes ajustes foram feitos no dia-dia na Les Rambles até alcançarmos uma forma mais ou menos definida. Mas depois deste trabalho de ajuste, passava por uma reconfiguração para cada cidade que aportamos, na Itália, na França e na Suíça.

A inclusão da participação do músico se deu a partir da Itália e foi uma dificuldade de solução mais harmoniosa do que a fase de Barcelona que chamo da metamorfose Brasil-Europa. A metamorfose da dupla para o trio foi bem mais suave, talvez devido à flexibilidade e afinidade, mas também ao foco e à emergência da situação concreta essencial: estávamos num mesmo e único barco e não podíamos nos dar o luxo de afundar.

Por último, o rochedo dos atritos de relacionamento pessoal. Ninguém passa a conviver 24 horas por dia com outras pessoas, durante três meses ininterruptos, sem empacar neste rochedo. O choque de temperamentos é inevitável e foi fator de inúmeras crises; a experiência Tataravó encarnou todos estes grãos de suor, lágrimas e risos. Para todos os problemas estéticos e pessoais, para todas as conquistas e perdas, para todas as decisões e incertezas, para todas as frustrações e paixões, havia uma única estrela capaz de nos guiar: a arte. E o barco da arte daquela viagem se chamava Tataravó. O espetáculo absorveu todas as tensões, prazeres, crises, alegrias e mágoas daquela travessia. E todas as rotas, foram tomadas em sua função, para criar oportunidade e ocasião para sua apresentação. Os peixes só poderiam vir desta pescaria. Alimentamos-lhe com nossa presença e imaginação, ela nos nutriu com alho, tomate e macarrão.


Chegamos a cidades e locais que não tinham tradição de teatro de rua para podermos apresentar e passar o chapéu; acampamos numa floresta gelada no norte da Itália; dormimos ao lado do trilho do trem em Zurique (Suíça); fomos acolhidos por amigos, conhecidos, contatos e “colegas de estrada” que, às vezes, não tinham nem chuveiro em sua casa; nem sempre foi fácil ser acolhido – a final estávamos em três - sem provocar certo incômodo. Passamos por momentos tensos, a exemplo da chegada noturna na estação de trem de Bolonha, onde nos vimos num contexto nitidamente hostil até sermos salvos, com certo atraso, por um de nossos anjos da guarda – na estrada dos palhaços sempre aparecem anjos para nos livrar de apuros imprevisíveis.

Cada um dos três sofreu abalos emocionais por motivos diversos em momentos diferentes. Estes abalos produziram efeitos no relacionamento com o trabalho. Cada pedra, rochedo, às vezes icebergs, são perigos que se apresentam no oceano das travessias. Esquivamo-nos delas apenas para nos aproximar de novos arrecifes. Não ficamos, no entanto, intactos dos estilhaços que ferem nossa percepção, que ás vezes, nos marca com cicatrizes dolorosas. Mil pontes ligam cada grão de estilhaço à experiência Tataravó, ou, de outro modo, a cada apresentação evocamos, presentificamos e movimentamos o imaginário da experiência de exílio, perigo, travessia e paixões conectados ao espetáculo de rua Tataravó. A experiência da qual estou falando não é a experiência que acontece, mas a experiência que nos acontece:

Se a experiência é o que nos acontece, e se o saber da experiência tem a ver com a elaboração do sentido ou do sem-sentido do que nos acontece, trata-se de um saber finito, ligado a existência de um indivíduo ou de uma comunidade humana particular; ou, de um modo ainda mais explícito, trata-se de um saber que revela ao homem concreto singular, entendido individual ou coletivamente, o sentido ou sem-sentido de sua própria existência, de sua própria finitude. (...) Se a experiência não é o que acontece, mas o que nos acontece, duas pessoas, ainda que enfrentem o mesmo acontecimento, não fazem a mesma experiência. O acontecimento é comum, mas a experiência para cada qual sua, singular e de alguma maneira impossível de ser repetida. O saber da experiência é um saber que não pode separar-se do indivíduo concreto em quem encarna. Não está, como o conhecimento científico, fora de nós, mas somente tem sentido no modo como configura uma personalidade, um caráter, uma sensibilidade ou, em definitivo, uma forma humana singular de estar no mundo, que é por sua vez uma ética (um modo de conduzir-se) e uma estética (um estilo). (...) ninguém pode aprender da experiência de outro, a menos que esta experiência seja de algum modo revivido e tornada própria. (BONDÍA, 2002, p. 27)

Gostaria de finalizar com este registro de bordo do dia 30/03/2003, ainda no mês da sua estréia e um ano antes da grande travessia em 2004, que expressa a percepção do meu trabalho como palhaço naquele momento:

Hoje eu e Alexandre Luis Casali encerramos o ciclo de apresentações de Tataravó, cujo ponto de partida se deu no dia do meu aniversário 9 de março, atravessou o Festival de Rua do Aeroclube e continuou nos últimos dois domingos de março no Aeroclube. Eu e Xande criamos, ou melhor, nossos palhaços criaram Tataravó na base de muita apresentação, improvisação, relação com a platéia, uma estrutura que funciona bem nas praças do Aeroclube. Chegamos a ser contratados neste mesmo mês a fazer uma apresentação de Tataravó numa festa de aniversário no Pau da Lima.

Esta parceria está sendo ótima. Tezo e, sobretudo, Supertezo está crescendo muito. O trabalho de palhaço está mobilizando a minha energia criativa cada vez mais. Descubro universos de possibilidades de viver o clown, é como se Supertezo trouxesse consigo poderes ilimitados, de jogar o clown para fora, crescer o estado de clown. Supertezo é o meu clown dilatado ao máximo, grande, ele não é ridículo, mas super-ridículo, ele não precisa pensar porque ele tem poder de reagir super-rápido ou super-devagar. Estou aprendendo a partilhar com a platéia, com o parceiro e brincar com o meu clown ao mesmo tempo. Ou seja, percebo que para poder partilhar com a platéia preciso manter-me conectado ao mundo do clown, me enraizar no seu mundo e aí sim é possível convidar o espectador a entrar neste mundo. Um mundo de alegria, libertação, amor, fantasia, prazer. Tezo é erótico, mas Supertezo é super-erótico. Ele paquera muitas ao mesmo tempo e fica ligado nas suas paqueras durante a apresentação. Estas paqueras o mantêm com tesão de estar ali expondo o seu corpo, seus sentimentos, desnudando a sua alma, a sua presença. Supertezo pode tudo e quer tudo. Ser forte, ser poderoso, campeão, vencedor, ser super, mas todas estas super-qualidades não conseguem encobrir a sua super-fragilidade, seu cinturão é uma calcinha, a sua capa tem 8 metros, boa parte do tempo passa lutando para mantê-la voando, já ele, não consegue voar, ou melhor, ele voa sem precisar voar.





Tataravó, apresentação no 19º Festival de Teatro de Rua Aurillac (França), 2004

Referências

BACHELARD, Gaston. O Ar e os Sonhos – ensaio sobre a imaginação do movimento. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

BACHELARD, Gaston. A Poética do Espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

BONDÍA, Jorge Larrosa. “Notas sobre a experiência e o saber de experiência”, In Revista Brasileira de Educação. 2002.

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