Resenha sobre a palestra Palhaçaria em Pauta. (Lívia Michele Carlos Pinheiro)


Daniela Félix, Demian Reis e Suzana Miranda, Palestra-Debate Palhaçaria em Pauta, IHAC/UFBA, 2011. 


A palestra Palhaçaria em Pauta, coordenada pelo professor Dr. Demian Reis e suas convidadas (uma cientista social e três atrizes com experiência em palhaçaria) constituiu um momento bastante elucidativo com relação à temática. Com o texto Introdução da tese de Demian Reis intitulado Caçadores de risos: o mundo maravilhoso da palhaçaria, como referência teórica pôde-se entender melhor e refletir a arte do palhaço e suas peculiaridades.
A trajetória metodológica demonstrada por Demian no início da palestra nos mostrou o quanto o trabalho por ele desenvolvido foi detalhista e minucioso. Fez-se um apanhado histórico e um trabalho de campo nas principais escolas e espetáculos de palhaço no Brasil e na Europa, destacando como uma das principais diferenças entre estas duas palhaçarias o fato de que a brasileira é mais oral.
Muitos pontos importantes foram explanados pelos palestrantes dentre eles destacamos o fato de o palhaço se tratar de uma obra de arte viva, onde o alvo do riso é o seu próprio corpo, ele é a piada que está exposta, em meio ao povo ou platéia e, esta última, entendida como peça fundamental no espetáculo. O espectador é como um co-produtor e não simplesmente um receptor passivo do espetáculo. A platéia, portanto é peça fundamental na perpetuação e na elaboração da palhaçaria. O palhaço tem a obrigação de perceber o que o público necessita e dar isso a ele. E para isto ele desconstrói seu corpo transformando-o em um corpo risível.
Destacou-se ainda que por detrás da máscara do palhaço existe um homem que sente o mundo tão intensamente que o impacto sobre o espectador é quase sempre violento, exagerado. Na verdade o palhaço adota uma diversidade de estratégias cômicas para brincar com a nossa forma de ver o mundo, desconstruindo paradigmas arraigados na nossa sociedade disciplinada e organizada, o que por muitas vezes causa um choque. Essa quebra de tabus ficou evidente quando Suzi comentou sobre o seu novo personagem “A mulher barbuda”.
Palhaçaria, portanto, deve ser entendida como “uma forma teatral em que a dramaturgia da vida é exposta de maneira risível” (REIS, 2010). Neste contexto, o clown é uma antena parabólica “treinado tecnicamente” para perceber, absorver, transformar e devolver artisticamente as iminências do nosso cotidiano: chamando a atenção, criticando, focalizando, satirizando, amenizando, parodiando, contrastando, ridicularizando ou, simplesmente, dizendo. Assim ele apresenta a possibilidade de releitura do mundo de uma forma mais nítida.
Discutiu-se ainda a identidade mutável do palhaço constituindo-se em uma obra de arte que se modifica diante dos olhos do outro. O clown não é um tipo específico e rígido, mas o estereótipo dos outros, de si mesmo e de todos ao mesmo tempo. É disso que vem o seu prazer dramatúrgico. O palhaço não cria uma identidade única e controlável e não há um padrão em suas apresentações.  O interessante é transformar os furos e falhas em um corpo cênico. Ele tem que ter a competência de saber lidar com o descontrole durante os espetáculos usando-o inclusive a seu favor, como fez Suzi quando vimos o vídeo em que, em uma de suas apresentações, o balão simulando um seio, escapa de sua mão e ela usa isso para compor a cena, colocando-o entre as pernas e levando a platéia ao riso.
Sobre essa capacidade de improvisação Daniela Felix trouxe conceitos muito interessantes, como a diferença entre habilidade, capacidade e competência e entre o improviso constitutivo e o improviso condicional. A competência é algo inerente ao ser humano, todos nós nascemos com características que nos permite atingir determinado desempenho; já a capacidade se refere ao “ser capaz de” e a habilidade é o saber fazer, é portanto um indicativo da capacidade. Com relação ao improviso constitutivo discutimos que neste caso a mente controla a ação, é quando tudo no número do palhaço está saindo como ele tinha planejado; e o improviso condicional está relacionado ao descontrole, ao inesperado e é algo que exige competência para se lidar.        
Foi apresentado também as quatro polaridades da comicidade dos palhaços: os bufões, os brancos, os augustos e os enganadores. O Augusto atua de forma simples, ingênuo, irreverente, alegre, ridículo e na maioria das vezes atrapalhado. O Branco é o oposto do Augusto. Ele denota superioridade, um ar aristocrático. Malicioso, enganador, o Clown Branco em cena ridiculariza o Augusto. Sua tarefa consiste em manipular e explorar o seu parceiro. É interessante ressaltar que existe maior riqueza na comicidade quando os dois tipos atuam em dupla, pois um serve de contraponto ao outro. Entretanto vem-se observando uma dominação dos palhaços augustos, o que tem tornado os espetáculos monótonos sem esses contrapontos interessantes com a realidade.
Por fim, o debate nos fez ouvir e refletir sobre as experiências dos palhaços convidados. A coerência entre a teoria explanada e as experiências relatadas ficou evidente. Pôde-se perceber que cada palhaço encontra sua forma própria de estabelecer o diálogo com seu público. Este diálogo com o público proporciona distintas formas de proceder a cada apresentação. O palhaço monta sua apresentação conforme o jogo com o público. Logo, com o mesmo material o palhaço articula de diferentes modos seu espetáculo. Cada apresentação revela-se única, pois cada público tem sua forma de se comportar, exigindo do artista diversas respostas.
Assim vimos que a figura do palhaço sempre esteve presente na sociedade, em várias culturas, desde épocas remotas, como válvula de escape para as tensões dos grupos, sendo sempre flexível às regras ditadas pela mesma – aceitando, compreendendo e rindo. Sendo assim, o palhaço nos mostra que é possível questionar, criticar, aceitar e rir dos problemas de si, e perceber que é bem melhor viver mais leve.
Isso é possível através da linguagem do palhaço que configura-se como forma de expressão cênica, valendo-se de algumas especificidades, dentre as quais destaca-se: a exposição exagerada dos próprios sentimentos do artista; sua interação com o público, de forma direta, recorrendo ao contato pessoal e único estabelecido com os presentes; sua capacidade de provocar o riso na platéia, instigando-a à experimentação de diversos sentimentos. Livre, exagerado nos próprios sentimentos e com o fim de fazer rir, o palhaço é dono de uma composição gestual que se apóia na contradição, no exagero e na busca de revelar o artista: seu ridículo e seus sentimentos.

Lívia Michele Carlos Pinheiro

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