Kátia Mattoso esteja em paz e bem

Foto: Carlos Souza















Recentemente a historiadora Katia Mattoso faleceu, conheci-a quando era criança as voltas com meu pai e minha mãe. Ela teve uma grande influência na minha vida porque teve uma grande influência na vida de meu pai, João Reis. Ao que saiba foi quem primeiro o incentivou na sua incursão profissional nas trilhas das histórias da bahia que veio a embarcar tão definitivamente. Eu mesmo quase caio na mesma trilha se não tivesse me topado antes com o teatro, do qual parece que também embarquei tão definitivamente. Rs. Não consegui chegar a tempo para a missa de sétimo dia no Mosteiro de São Bento na segunda-feira. Na minha ingênua confiança no transporte coletivo da federação para avenida 7. Entre esperas e decisões vim confirmar que só havia um ônibus que fazia esta travessia, o praça da sé executivo, que pelo tempo que esperei deve ter passado assim que cheguei. Mas a ineficiência do transporte público não justifica nem diminui a frustração da minha ausência no ritual onde esperava dividir a angústia da perda com os outros conhecidos e mais próximos dela. Acho que este registro é um pouco uma tentativa de compensar, me reconciliar com as pessoas e ritualizar, do jeito que posso, o peso da perda repentina de Kátia, que apesar de distante, geograficamente, nunca deixei de sentir que tinha um interesse sincero pela minha pessoa e realização profissional. Ou melhor, para ser mais franco, o que é a motivação principal dos familiares e parentes, que seus queridos consigam uma forma de viver estável que seja também uma perspectiva de crescimento. Lembro-me de um dos seus últimos conselhos, estude uma coisa, mas muito bem, pois aí outros precisarão solicitar a competência da sua especialidade. Sempre que eu passava em Paris - até parece que ando em Paris com freqüência! - e ela sabia, me convidava para almoçar ou jantar um dia. Bem, não é que ao chegar em casa, agoniado por ter perdido a missa, em meio a mais uma expedição na bagunça de papeladas em casa - na procura de certificados e comprovantes - me deparei com uma resenha que fiz de seu livro
Ser Escravo no Brasil (Brasiliense, 1982). Por causa dessa coincidência resolvi partilhar aqui no meu blog esta resenha entregue no dia 1 de maio de 1996 na disciplina Historiografia Brasileira que na ocasião foi ministrada pela professora Margareth Rago quando eu ainda fazia graduação em História na Unicamp. Quero deixar esta resenha aqui como registro do meu carinho pela Kátia Mattoso, que sempre teve pra mim um ar de duquesa e conservava uma nobreza que lhe era natural e sem traços de arrogância. Pra mim sempre ficará uma imagem dela usando luvas brancas e me acolhendo com algum doce ou um presente qualquer, com a postura de uma mulher poderosa, firme e de uma ética inabalável, mas também sempre pronta para acolher, incentivar e agradar. Adeus Kátia, esteja bem, feliz e em paz.


Ser Escravo no Brasil - Entre a resistência e a ressocialização


A historiadora Kátia Mattoso questiona o significado de ser escravo no Brasil, recortando, como a própria autora diz um período tão extenso (dos séculos XVll, XVlll e XlX), um tema tão amplo num país tão vasto. O recorte já anuncia a perspectiva do trabalho, uma análise panorâmica da escravidão no Brasil privilegiando o ponto de vista do escravo e, dando um salto na historiografia, aprofundando a pesquisa histórica em torno dos libertos. Um dos objetivos do livro é entender mais a complexidade da história do Brasil, uma sociedade cuja escravidão teve significados diferentes para escravos africanos e escravos crioulos, libertos e senhores proprietários de fazendas, senhores em busca de ouro e os outros senhores que compunham a população das cidades a partir do início do século XlX, momento de surgimento de uma camada média de pequenos e médios proprietários, profissionais liberais, marinheiros e funcionários públicos. Uma das imagens confrontadas pelo livro é a de que o Brasil era uma sociedade feita de uma classe dominante de brancos contra uma classe dominada de pretos. Me deterei na parte “Ser Escravo no Brasil”, dividida em três capítulos: o primeiro intitulado “O Africano adapta-se ao Brasil e aos brasileiros”, o segundo “As solidariedades” e por último “Refúgios e refugos”.
O escravo brasileiro deve ser estudado numa multiplicidade de perspectivas, materiais e afetivas, para apreendermos de uma maneira mais completa a experiência de ser escravo no Brasil. Ao mesmo tempo, é necessário diferenciar a experiência da escravidão nas fazendas de açucar, das minas de ouro e diamantes, dos espaços urbanos e dos sertões pecuários. Em todas estas regiões, os escravos se confrontaram com limitações diferentes na sua busca de liberdade e espaços de autonomia. Por exemplo, se os escravos urbanos (levando em conta que a urbanização começa partir do início do século XlX) em cidades como a Bahia, atual Salvador, desfrutavam de maiores espaços de circulação fora do controle dos seus senhores e até mesmo possibilidades de ascensão social, mesmo que fazendo serviços para os mesmos, os escravos das minas tinham maiores possibilidades de comprar a sua alforria. Isso se dava tanto devido às chances que os escravos das minas tinham de encontrar uma quantidade de pedras preciosas, como porque na maioria das vezes os senhores-empregadores possuíam apenas uma propriedade temporária, esgotado o potencial minerador, as terras eram vendidas e os escravos também, podendo os últimos às vezes comprar sua própria liberdade. Mas isso não significa que os escravos mineiros vivessem uma escravidão mais amena que seus irmãos citadinos e das fazendas. Os escravos das regiões de minas, em grande parte eram obrigados a ficar com as pernas dentro da água durantes horas a fio, em posições que frequentemente deformavam o seu corpo para o resto das suas vidas. A falta de companheiras escravas nestas regiões também eram crônicas, sendo os escravos obrigados a viveram em longos períodos de impossibilidade sexual forçada.
Ser escravo no Brasil do século XlX tinha diversas significações. Podemos começar pelas diferenças de vida que o escravo novo ou boçal, o recém-chegado africano tinha do escravo crioulo, negro nascido no Brasil. A escravidão teve significados diferentes para o africano e para o crioulo. O primeiro teria que se aventurar num duplo aprendizado para se adaptar no novo território, a começar pela reconstrução de uma nova identidade social, que estaria ligado obrigatoriamente a uma imitação/incorporação das instituições brancas a começar pelo reconhecimento da autoridade do seu senhor. Por outro lado o escravo africano manteve as suas tradições criando laços de solidariedade em torno da sua própria comunidade, cujos resultados mais sólidos se manifestaram no plano religioso, na reinvenção de ritos, cultos e práticas religiosas. Já o escravo crioulo viveu uma situação bem mais contraditória, aparentemente mais integrado à sociedade branca, este não era perdoado pelo seu senhor quando cometia crimes ou participava de rebeliões, se bem que ao se ver mais incorporado à cultura branca tinha maiores oportunidades de burlar as barreiras que se lhes opunham. Por outro lado não tinha a solidariedade da comunidade africana na hora do fracasso. Mantinha-se deste modo, fiel, obediente e humilde diante do senhor, aliás, segundo Mattoso, este era o perfil comum que norteava as relações entre os escravos e senhores.
Criticando certa historiografia que pinta um quadro idílico da escravidão brasileira, entre os quais Casa Grande e Senzala de Gilberto Freyre, mostra que esta historiografia ressaltou a imagem das fazendas em que feitores passeavam com o chicote na mão fazendo uso dela recorrentemente. (Mattoso, 1988, p119) Para a autora, a consulta de uma vasta documentação mostra uma outra realidade, e que casos de sadomasoquismos de senhores e senhoras existiram, porém não eram tão freqüentes quanto essa historiografia aponta, sendo o uso da violência restritos a períodos limitados. Para ela, os senhores enquanto empresários da agro-indústria da cana-de-açucar não estavam interessados em maltratar sua mão-de-obra, pois esta comprometeria a produtividade dos seus engenhos. Do ponto de vista da alimentação inclusive, argumenta que a população pobre do século XX vive desnutrição muito maior que dos escravos do século XlX. A autora sustenta que, em geral, o modo para se adaptar os escravos às condições de trabalho era de persuação através de uma manipulação do caráter patriarcal e paternalista da identidade social do senhor. A primeira tentativa do senhor, portanto, é de ligar os escravos à ele por laços afetivos.
De que forma se dá a adaptação dos escravos africanos nas fazendas? É preciso lembrar que o recém-chegado escravo africano acabou de passar por uma dessocialização do seu indivíduo, ou seja, extraído do seu meio social, seus vínculos familiares, de clã e de comunidade foram destruídos. A reconstrução da sua personalidade social será necessário na medida em que o africano fora dessocializado e transformado em mercadoria. A busca de sua repersonalização se dará a partir e nos limites da identidade social do seu senhor e familiares ao qual o escravo estava obrigatoriamente ligado. Foi no interior da escravidão das fazendas, regiões mineradoras, sertões pecuários e cidades que os africanos recontruíram a sua personalidade social, que se desdobra em duas partes, a que estabelece vínculos econômicos, afetivos e religiosos com a comunidade escrava, e a outra que caracteriza a relação entre o escravo e seu senhor, a humildade, fidelidade e obediência que o primeiro deve ao segundo, mesmo quando este tripé foi usado como uma forma sutil de resistência à escravidão.
Várias estratégias foram usadas pelos senhores para fragilisar as bases de união da comunidade escrava, a principiar pela misturas de africanos de diversas etnias, esta tática impedia a coesão interna no interior da comunidade escrava. Outra forma de criar rivalidades entre os escravos era dar a alguns tarefas mais pesados que a outros. Isso acontecia de uma maneira mais incisiva na diferenciação das tarefas entre os escravos africanos e os escravos crioulos. De qualquer forma, para os que se adaptavam às condições de trabalho das fazendas, havia três tarefas fundamentais a serem atingidas, aprender a língua portuguesa, aceitar a religião católica e se disciplinar ao trabalho das fazendas, minas, cidades ou dos sertões. Quanto à religião, os africanos deram uma resposta original, imitação das exterioridades do catolicismo e o culto de suas próprias tradições religiosas, entre os quais o bantu, fons, iorubás aos poucos foram se mostrando aceitável para todos os africanos. Apenas o islamismo nas cidades se dirigiam a uma possível “elite negra”.
Apesar de Mattoso mostrar como uma das principais bases da escravidão se articularam através da necessidade do escravo africano reconstruir a sua personalidade social a partir da identidade social do seu senhor de maneira que o último manipule o primeiro com a sua autoridade patriarcal e paternalista, é no nordeste que temos notícias de revoltas escravas em maior número e aonde os conflitos se mostraram mais violentos. A fuga, o suicídio, a formação de quilombos e as rebeliões, foram momentos que demonstraram muito mais a inadaptação dos escravos à escravidão. Foram nestes momentos que a repressão dos senhores entravam em cena, geralmente instrumentalizada pelas mãos dos feitores; o chicote, o pelourinho, os castigos corporais, assassinatos e às vezes a guerra declarada com o apoio do governo, em casos de rebeliões sérias como a dos Malês na Salvador de 1835 ou quilombos ameaçadores como dos Palmares que percorreu praticamente o século XVII inteiro. Quando nos confrontamos com a documentação que registra este lado da escravidão - o da inadaptação dos negros às condições de trabalho escravo - notamos que não basta simplesmente afirmar que na sociedade das fazendas de engenhos havia bem menos mobilidade social do que nas cidades e regiões de mineração, ou que os escravos das minas e dos sertões viviam numa escravidão mais amena. O número de suicídios das cidades, por exemplo, era maior que das fazendas e das regiões mineiras. É necessário descortinar o tecido complexo.
Neste sentido me pergunto se a interpretação de Kátia Mattoso que vai no sentido de perceber o jogo dialético entre a adaptação e a inadaptação, a ressocialização e a resistência do escravo na sociedade escravista, recoloca num outro patamar os estudos do escravo no Brasil ou se reproduz o mito da “democracia racial” forjada pela historiografia tradicional, em que pese a obra de Gilberto Freyre. Quando começamos a buscar os diferentes significados da escravidão para escravos crioulos, escravos africanos, libertos, forros, livres, senhores de engenho, senhores-empregadores e pecuários, percebemos que a escravidão teve sentidos diversos para cada um desses indivíduos. Particularmente com relação à massa dos escravos, Mattoso faz um belo trabalho de desnudar algumas faces mais sutis da cultura escrava, mostrando os rostos dessa camada social geralmente tratada como uma massa indistinta, homogênea, cuja única experiência seja a vivida nas fazendas dos engenhos sob a tutelo do chicote dos feitores. Talvez a dualidade entre a adaptação e a inadaptação e a ressocialização e a resistência ainda seja uma esquema de interpretação incompleto para apreendermos os diversos sentidos que a escravidão proporcionou, porém, ela nos abre um leque maior que a da historiografia anterior. O fato de um escravo estar aparentemente integrado ao paternalismo do senhor através da humildade, obediência e a fidelidade, não explica inteiramente a sua relação com a sociedade, pois para além das suas relações com a comunidade escrava, cada escravo, independente do fato de não ser considerado um indivíduo juridicamente, certamente experimentou outros níveis de relações com os senhores.
Se sempre encararmos a formação de quilombos, os suicídios, as fugas, as revoltas, as confrarias religiosas, como espaços de refúgios e refugos, será que não estaremos sempre enquadrando as atitudes dos negros a uma margem da história em que só cabem as resistências e as inadaptações. Será que esta maneira de interpretar a experiência “crítica”dos negros africanos e crioulos na história do Brasil, não esta roubando dos mesmos a capacidade/possibilidade de fazer escolhas políticas que poderiam ser tomadas independentemente, ou até mesmo em relação a chamada sociedade escravista, mas que, ao ser colocada como resistência à escravidão, refúgio da sociedade branca, inadaptação às condições do trabalho escravo, acaba sempre sendo definida a partir de um referencial dominante. A da sociedade escrava dos senhores brancos.
A autora parece estar lutando contra uma historiografia que criou uma imagem simplificadora da escravidão que opõe de um lado uma classe dominante formada por homens livres e uma classe de dominados composta por homens pretos. (Mattoso, 1988, p.123) Ela argumenta que às vezes a relação entre um escravo e um senhor é menos tensa que entre certos escravos entre si ou entre um escravo e um liberto. Com relação a esta historiografia, não aponta a quem esta se referindo ou a que trabalhos, provavelmente porque este livro tem um caráter de divulgação, pois ele também está livre de notas de rodapés para tornar a leitura mais leve. Esta característica, para os não especialistas dificulta uma crítica mais profunda no modo como a autora trabalha com a documentação. A exposição e o conteúdo dos capítulos explica, no entanto, um pouco da sua intenção. Problematizar como o africano passado por um processo de dessocialização e transformação em mercadoria, se adapta e/ou como não se adapta às condições da escravidão, finalmente, como este deixa de ser escravo através da alforria, e qual o significado disso em relação à situação do escravo. Com relação ao modo que os escravos se adaptaram ou não às condições de trabalho, foi possível perceber que, para a autora, a maioria se adaptou, os que não se adaptaram, procuraram se rebelar, formar quilombos, se suicidar e fugir. Mas eu me pergunto até que ponto os que não participaram dessas práticas realmente se adaptaram? Será que basta ser um escravo que não participou dessas formas de resistência para ser considerado um negro africano ou crioulo adaptado/ressocializado à escravidão?

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